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14 agosto 2012

Saudade

Vila Velha, Praia da Costa
 

 

Poemas de Saudade

(Fernando Pessoa)

Eu amo tudo o que foi 

Tudo o que já não é

A dor que já não me dói

A antiga e errônea fé

O ontem que a dor deixou

O que deixou alegria

Só porque foi, e voou

E hoje é já outro dia

 

Salmo 137

Junto aos rios da Babilônia nós nos sentamos e choramos com saudade de Sião. Ali, nos salgueiros penduramos as nossas harpas;ali os nossos captores pediam-nos canções, os nossos opressores exigiam canções alegres, dizendo: ‘Cantem para nós uma das canções de Sião!’ Como poderíamos cantar as canções do Senhor numa terra estrangeira? Que a minha mão direita definhe, ó Jerusalém, se eu me esquecer de ti! Que a língua se me grude ao céu da boca, se eu não me lembrar de ti, e não considerar Jerusalém a minha maior alegria! Lembra-te, Senhor, dos edomitas e do que fizeram quando Jerusalém foi destruída, pois gritavam: "Arrasem-na! Arrasem-na até aos alicerces!". Ó cidade de Babilônia, destinada à destruição, feliz aquele que lhe retribuir o mal que você nos fez! Feliz aquele que pegar os seus filhos e os despedaçar contra a rocha!

Hoje amanheci com uma vontade de falar sobre a saudade. E pensei. Como fazer isto? Fazer um texto devocional? Queria fazer um artigo teológico de varias paginas, mas sabia que o blog da paróquia não comporta isso. A saudade é criticada como sendo uma vontade de voltar ao passado, uma nostalgia, ou uma volta a um passado antiquado e sem sentido, para o presente. Muito por causa disso, a sociedade sofre hoje em dia, pois uma das coisas tidas como “velhas” é querer re-viver algo que passou. Hoje tudo tem que ser novo, moderno diferente.

Nas nossas igrejas, o mesmo acontece. Quantas vezes não tive que ouvir, ao escolher determinadas músicas, que elas eram ruins porque eram antigas. O mesmo acontece com símbolos da liturgia cristã, como o sacrário ou a cruz processional: Muitos jovens e adolescentes simplesmente não o querem, porque acham eles antiquados, preferindo as liturgias light ou sem símbolo nenhum. Sem falar da liturgia em si...

Domingo passado lembrei do meu pai (pois em nosso país, era dia dos Pais), uma pessoa que gostava de falar muito, principalmente, das histórias do passado, contar coisas que aconteceram com ele ou com a nossa família. Por isso amanheci assim, nostálgico. Querendo reviver este tempo de historias e estórias, intermináveis que meu pai fazia, ao redor de uma mesa com meus irmãos e eu, ele falava e nos ouvimos horas e horas. Ah! saudade!

A verdade, porém, é a nostalgia, é a saudade de um sentimento, que nos torna humanos porque nos remete a um passado agradável que vivíamos. Ele nos faz relembrar daquilo de bom que passamos, que vivenciamos, e nos leva, muitas vezes, a repensar a vida que levamos neste tempo presente. Um resgate de algo bom, que teve um efeito positivo em nossas vidas, jamais deveria ser criticado, mas sim elogiado. Por isso me lembrei do Salmo 137...

O Salmo 137 nos mostra um povo que usou o sentimento de saudade, da nostalgia para ir além do seu sofrimento , dor e solidão numa terra estrangeira. Este povo utilizou este sentimento para manter a sanidade nos momentos de angústia e sofrimento no cativeiro, momentos em que até seus próprios entendimentos como pessoa foram destruídas.

O Salmo 137 apresenta uma narrativa claramente de uma pessoa no exílio. Ela fala, no versículo 1, sobre os rios da Babilônia, onde as pessoas sentam e choram com saudades de Sião (Jerusalém). A saudade de sua terra era exacerbada quando seus captores pediam que se cantassem canções felizes de sua terra (v.3). Entretanto, para aquele povo, os salmos eram músicas de adoração a Deus, era algo sagrado, não era meramente músicas para divertimento. Isso fazia parte da identidade daquele povo, que se via como o povo separado por Deus. Por isso, sua afirmação tão contundente (v. 5), onde o salmista afirma que espera que sua mão definhe, se ele se esquecer de Jerusalém, ou quando o salmista pede que sua língua cole no céu de sua boca, caso não considere seu lar sua maior alegria (v.6).

O texto nos traz algumas lições importantes sobre o que a saudade pode nos causar: 1) A saudade gera alegria pela restituição: O povo israelita sofreu as consequências de se afastar de Deus e cultuar outros ídolos. Agora, perceberam quão bom era viver em suas terras, livres, sem o jugo de outra pessoa. Com isso fortaleceram sua vontade de reviver ou viver plena mente sua religião que outrora foi esquecida. 2) A saudade gera fortalecimento da identidade: O neste sentimento, ao se verem cercados pela cultura e religiosidade babilônica, criaram um sentimento de unidade maior, unindo-se em torno de suas histórias ancestrais, seu passado, sua religião e seu Deus. Estudiosos afirmam que foi aqui que grande maior parte da Bíblia hebraica foi composta, deixou de ser mera tradição oral e passou para a escrita, criando um sentimento de identidade única, pois estavam espalhados pelo território babilônico, deixando um legando inestimável (tanto histórico como teológico) para nós cristãos. 3) A saudade gera frustração pela situação atual e sentimento de mudança: E aqui, deve-se tomar cuidado, pois a vontade de mudança de realidade pode gerar situações extremas, (cf vs. 7 a 9). A fúria do povo israelita se deve provavelmente por ter sido vítima da mesma pena. Por isso o sentimento de vingança do texto. A humanidade do autor transparece em seu cântico de lamento e nos leva a ponderar, que devemos aprender a canalizar nossa frustração e nosso desejo de mudança para coisas boas, justas e de preferência de transformação da realidade, para uma perspectiva boa e libertadora e nunca opressora e vingativa, querendo sempre re-significar nossa situação atual através das memórias boas. Como diz o livro das Lamentações de Jeremias: Quero trazer à memória o que pode me dar esperança.(cf.Lamentações 3.21)

Encerro esta pequena meditação sobre a saudade dizendo: Fiquem com saudade, pois é muito bom! Que poema e canção bonita os israelitas e Fernando Pessoas escreveram quando estavam com saudade.

Porque como diz Rubem Alves: A saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar. Ou ainda melhor: Deus mora no mundo das coisas que não existem, o mundo da saudade...!

Rev. Daniel Rangel Cabral Jr, ost+

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Um comentário:

Daniel Soren disse...

Belo artigo!

Abaixo a tradução do Coro dos Escravos Hebreus da ópera Nabucco de G. Verdi, que faz referência ao Salmo 137

Voa, pensamento, com tuas asas douradas;
voa, pousa-te nas encostas e no topo das colinas, onde perfumam mornas e macias
as brisas doces do solo natal!

Cumprimenta as margens do rio Jordão,
as torres derrubadas de Jerusalém...
Oh minha pátria tão bela e perdida!
Oh lembrança tão cara e fatal!

Harpa dourada dos grandes poetas,
porque agora estas muda pendurada na salgueiro?
Reacendas as memórias no nosso peito,
fale-nós do bom tempo que foi!

Como Sòlima fez com o destino
traz um som de cruel lamento,
ou que o Senhor te inspire consolação que nos de coragem durante a luta!

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