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23 março 2012

Vida de Pastor

(aos seminaristas de hoje que realmente querem servir o Povo de Deus e não faturar no negócio religioso)

Nota: este texto foi publicado em meu blog pessoal, mas por sugestão de vários colegas e paroquianos, estou partilhando no O Apóstolo, com as devidas adaptações.

Novo sentido espiritualidade 01Quando estudava no Seminário, em São Paulo, tirávamos algumas tardes de sábado e nos reuníamos, alunos e professores, para um bate papo informal, onde o que mais acontecia era a troca de experiências e um partilhar da vida.  Bons tempos em que a gente partilhava sentimentos, emoções, esperanças e fracassos com pessoas reais, olho no olho, e não nas redes sociais.  Eu costumava anotar algumas coisas em um caderno, as coisas que chamavam a atenção, que marcavam o coração… uma espécie de registro de momentos e palavras que impressionaram minha vivência aos 22 anos.

Esses caderninhos guardo até hoje, são minha memória afetiva e intelectual.

Lembro especialmente de uma tarde, o grupo não era grande, umas sete ou oito pessoas, e o papo com um velho professor, já falecido...

O assunto correu e chegou na “vida de pastor”… o nosso professor contou algumas de suas vivências, em alguns casos rimos muito, mas de repente nos saiu com essa: (tradução dos meus garranchos no caderno e devidamente editado para ser uma postagem)

Vários de vocês estão aqui estudando porque almejam seguir o ministério ordenado. Não sei se têm ideia da loucura que estão querendo. Isso não é profissão, mas é vocação.  Não é uma carreira, mas é um caminho que sempre nos leva para um lugar sombrio: a alma humana. A tua alma e a alma dos outros.

Você precisa estar prevenido, porque aqui no Seminário, tudo é sonho e projeto, mas lá, no exercício do ministério, na solidão que isso é, a coisa é muito diferente.

Logo de início aviso que felicidade no casamento vai ser algo difícil, a menos que você encontre a esposa certa (naquele tempo mal se falava em ordenação de mulheres), que não deve ser prioritariamente crente mas tem de ter um espírito de abnegação grande e não ser ambiciosa. Um pastor é quase como um médico: tem plantão 24 horas todos os dias, inclusive domingos! Depois do culto, pode acontecer que àquele almoço na casa da sogra, tua esposa e os filhos vão, e você não vá porque a Dona Maricota foi internada e está mal, a família pede sua presença para acompanhar a situação, só que o hospital é exatamente aquele que fica do outro lado da cidade, você não tem carro e provavelmente vai passar lá o resto do dia, quando não a noite também. E, pode ter certeza, sempre aparecerá uma Dona Maricota ou uma emergência pastoral no dia do aniversário da tua esposa, dos teus filhos, no do casamento, no seu mesmo, ou no dia da confraternização da escola das crianças.

Muitas vezes você vai ficar angustiado porque teu soldo é pequeno, e teus filhos querem coisas que você não pode comprar. Tirar férias será sempre um tormento, a preocupação com a igreja e com quem poderá substituir você nesse tempo. Acostumem-se a tirar férias curtas mas pelo menos duas vezes por ano, porque ninguém é de ferro.

As pessoas da Igreja e mesmo de fora da Igreja serão exigentes com você. Você não tem o direito de errar, de ficar triste, de ter dúvidas… ninguém pensa que um pastor também precisa de um pastor, e o Bispo, que deveria fazer isso no mínimo, geralmente não faz; até porque o Bispo também precisa de um pastor, e muito.

Você terá de ser sempre o amigo, o ouvinte, o solidário, o pau-pra-toda obra. Ninguém estará interessado nos problemas que você tem, mas todos querem que você se interesse pelos problemas deles. Poucas vezes você terá um amigo, um ouvinte, alguém solidário, alguém que se ofereça para ajudar você na obra.  Você será a latrina onde as pessoas jogarão suas merdas interiores… então ai, lembre que o Cristo é bom faxineiro e sempre virá para dar a descarga. Nunca compartilhe essas merdas, deixei que o Faxineiro cuida delas, e ele tem muitas maneiras de fazer isso… com o tempo vocês entenderão. Coloquem sempre essas coisas ao pé da Cruz de Cristo e jamais comentem com ninguém, nem mesmo com quem falou com você.

Vocês dirão que Cristo é o pastor de vocês, isso é bonito, mas no dia a dia orem para que Ele seja pastor de vocês através de alguém que possa te abraçar sem medo, te ouvir e compreender que você é humano, tem sentimentos, sonhos, desejos, frustrações e também é pecador. Cercado de muita gente, o pastor está imerso em uma solidão tremenda. Nem mesmo seus colegas estarão disponíveis, por isso cuide que a burocracia da igreja não destrua as amizades que você está construindo aqui no Seminário; não se deixe contaminar pela inveja e pelo espírito de concorrência; seja humilde e lembre-se que você e todos que são pastores, são apenas servos de UM OUTRO, o verdadeiro e único Pastor.

Pense bem antes de aceitar a ordenação. Mas saiba que, se Deus te escolheu, Ele estará contigo sempre, até mesmo na tua fraqueza e no teu pecado. Por isso, reserve sempre parte do teu tempo em solidão, escrevendo, meditando, lendo, e orando, para ouvir a voz do Senhor.

Após 26 anos de vida no ministério ordenado, mesmo tendo passado a maior parte desse tempo servindo à Igreja em funções mais específicas, eu entendo e muito bem, as palavras do velho professor. Sei o quanto ele estava certo. É uma pena que hoje em dia a maioria dos que se dizem pastores são empresários da religião; pena que virou profissão.

Que Deus nos ajude!

Luiz Caetano, ost+

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Um comentário:

ANINHA disse...

Muito bom e exprime a realidade de vida de um Pároco!
O alerta sobre a natureza humana deste ser tem que ser divulgada: assim poderemos compreender melhor pequenas ou grandes falhas que constatamos, deixando sobressair somente a Unção do Espírito Santo que recai sobre ele , pois Jesus , ao escolher seus apóstolos e profetas, não procurou somente modelos de perfeição!

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